O surgimento do casamento por amor

Da idade média aos dias atuais o casamento mudou bastante
Da idade média aos dias atuais o casamento mudou bastante

Amor e casamento estão relacionados? Para o senso comum moderno sim, mas nem sempre foi assim e Luc Ferry, filósofo francês, nos mostra aspectos que vão do curioso ao polêmico sobre o assunto.

Uma jovem do interior chega a cidade grande. Ela se espanta com a quantidade de pessoas que circularam aqui e ali. Pequenos edifícios com 3 ou 4 andares acompanham as ruas iluminadas por lampiões e trilhadas por carruagens, tudo muito diferente de sua aldeia perdida no interior de uma Europa, que se industrializa cada vez mais.

Ela não está a passeio, deixou sua terra para trabalhar em uma das inúmeras tecelagens que empregam centenas de pessoas que antes trabalhavam em fazendas, plantando ou criando animais.

Esta jovem, diferente das que ficaram, receberá um salário e ganhará outras duas coisas: o anonimato, que não existe em sua aldeia, e a libertação do jugo da família e das tradições, incluindo aí a tradição do casamento imposto.

Ela tem a oportunidade de fazer algo antes impensável: casar-se com alguém por amor.

Mulheres trabalham em uma tecelagem
Mulheres trabalham em uma tecelagem. Uma oportunidade para mudar radicalmente a vida?

A narração acima pode parecer a introdução de um romance saído diretamente do séc. XIX, mas segundo o historiador americano Edward Shorter ela pode ser, sim, uma história verdadeira, ocorrida com homens e mulheres que deixaram o campo em busca de uma nova vida assalariada nos centros urbanos europeus e, segundo Shorter, a origem da mudança social do casamento por interesses econômicos para o casamento por amor e da família moderna, ideia compartilhada também por Luc Ferry.

Segundo esta lógica o capitalismo e a industrialização tem parte fundamental na transformação não só econômica, mas também afetiva. O salário, por menor que fosse, trazia consigo uma nova liberdade. Claro que não estamos considerando a exploração do trabalho, as inúmeras horas de labuta, o trabalho infantil ou as condições precárias nas fábricas, mas tão somente um novo modo de libertação, tanto do jugo das famílias quanto das tradições. A industrialização e urbanização criaram a figura da pessoa anônima, que não precisa ter sua vida vigiada nem tão pouco influenciada por uma comunidade.

Neste particular Luc Ferry vê o capitalismo como algo além das mazelas e da pobreza descritas por Charles Dickens e Victor Hugo. Para ele o capitalismo e a globalização trouxeram inúmeros aspectos positivos, a começar por esta mudança social com relação às paixões. Segundo as próprias palavras de Luc Ferry:

"mas isso é esquecer que na época ele (o capitalismo) poderia representar [...] uma formidável libertação do peso das comunidades. [...] o olhar moderno, sob a influência de Marx [...] e do pensamento anti-capitalista, tende a ver no salário apenas uma nova forma de exploração do homem pelo homem. Ao fazê-lo, oculta erroneamente o significado excepcional, em termos de emancipação, de ser pago por seu trabalho"

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É interessante como duas coisas aparentemente tão distintas (o amor e o capital) possam estar tão intimamente ligadas. Esta estranha e curiosa ligação pode até mesmo ser considerada polêmica por muitos e por isso é interessante observar mais detalhes desta história, especialmente analisar como eram as relações afetivas na Antiguidade.

A ANTIGUIDADE E O CASAMENTO

Quando falamos em Idade Média ou mesmo Renascença talvez uma das primeiras coisas que lembramos são as histórias de princesas presas em torres e príncipes que as resgatam ou jovens enamorados que resolvem fugir juntos pois as famílias são inimigas e não aprovam a relação. A realidade, porém, pode ser bem menos romântica do que os poetas e romancistas nos contam.

Imagine-se no séc. XIV, em uma aldeia medieval. Você está andando pelas ruas quando vê um homem montado ao contrário em cima de um burro. O homem está todo pintado de vermelho. As pessoas o xingam, jogam coisas podres nele e o levam desta forma para 'dar um passeio'. Você pensa que é um ladrão que foi pego ou algo do tipo quando na verdade é um marido que não anda com seu 'casamento' bem. Sendo assim os aldeões resolveram 'corrigir' o tal infeliz.

Você vira para o outro lado e vê uma espécie de procissão mas, ao invés de instrumentos, as pessoas 'tocam' com qualquer coisa que faça barulho. Na frente está acontecendo um casamento e a ideia é envergonhar o máximo possível os noivos. Na verdade o casamento é considerado mal visto por causa da diferença de idades dos noivos.

Estes são exemplos vindos da Idade Média, onde as pessoas intrometiam-se na vida alheia ao extremo. A vida privada não existia antes do séc. XVIII nem entre as pessoas comuns ou mesmo nas elites (os próprios reis muitas vezes faziam suas necessidades em público). Neste modelo de sociedade em que não existia privacidade e as escolhas eram muito limitadas, os casamentos geralmente eram de interesse também para os aldeões, já que um casamento unia terras o que influenciava a vida de todos. Com certeza estes rituais da Antiguidade deixam no 'chinelo' as tais 'fofoqueiras de janela' da atualidade.

Diferente do que poderíamos imaginar na Idade Média européia, e até posteriormente, tanto nas classes populares quanto na aristocracia, o casamento teve um significado diferente do que fomos acostumados a pensar. O casamento, em resumo, era um acordo para manter ou unir terras, heranças, promover alianças e etc. Era raro o amor estar envolvido e geralmente os casamentos eram feitos à revelia dos noivos.

Segundo François Le Brun,

"o objetivo do casamento é duplo: trata-se primeiramente de assegurar a linhagem, a transmissão do nome e do patrimônio ao mais velho, e de fabricar braços para manter a fazenda e nela trabalhar"

Nome, sangue e dinheiro; os alicerces do casamento nos tempos antigos, tempos estes que Luc Ferry chama de Antigo Regime.

Sob esta perspectiva o casamento por amor e o novo modelo de família iniciam-se pelas classes trabalhadoras enquanto a burguesia seguia mantendo as velhas tradições, já que ela obviamente tinham muito a perder com a libertação oficial do amor e a flexibilização das relações, coisas que a classe trabalhadora nem sonhava em obter. Para eles passou a ser mais importante a satisfação amorosa do que a econômica.

Mas fora os itens citados podemos falar também em uma tradição, já que mesmo hoje (século XXI), podemos observar casos de casamentos que caem neste critério do tal Antigo Regime, movidos por dinheiro ou nome, seja em pessoas de mais idade, seja em casais novos, apesar de menos comuns.

Apesar do critério econômico ou o status serem pesos na hora de escolher um companheiro ou companheira em certas camadas da sociedade, é fato que o amor e a livre escolha por parte dos filhos tomou as rédeas do casamento moderno, mesmo que não seja um casamento propriamente dito (de papel passado como dizem), mas uma união estável.

AMOR X CASAMENTO - ONTEM E HOJE

Segundo Ferry, o período que vai de 1850 a 1950 corresponde ao que ele chamou de família burguesa, em que um misto de tradição e amor convivem. Um relacionamento no qual o amor é mais fantasioso que real.

Hoje vivemos uma era de bastante liberdade neste quesito, em que nem mais a necessidade de um casamento formal há. Uma época em que a união por amor prevalece. Isso também pode ter reflexos nos filhos. Viver em uma casa onde os pais não se suportam e em que as brigas são uma regra pode trazer vários problemas psicológicos. A possibilidade de separação do casal pode trazer uma maior paz para as crianças, resultando em melhoras significativas em sua vida e seus traumas.

Mas não casar por amor não significava que a relação deveria ser fria. Citando Montaigne, filósofo da época:

"Um bom casamento, se existe, recusa a companhia e os modos de viver do amor. Ele tenta imitar os da amizade"

ou seja, segundo Montaigne o ideal do casamento deveria ser uma relação 'doce' e não de 'paixão'.

Assim podemos observar que existia a 'mulher para casar' e a 'mulher para transar' ou, da mesma forma o homem, uma analogia que Freud citaria em seus textos futuros.

Isso traz junto consigo o fenômeno do amante ou do adultério, já que o divórcio não era bem visto ou mesmo possível e o amor não era a regra das uniões. Recorrer a aventuras fora do casamento era prática comum ou uma espécie de 'regra velada'.

Neste contexto podemos inferir que o divórcio era algo sem sentido, já que a base das uniões era em essência um negócio.

Isto também não significa que as pessoas se casassem uma única vez. Devido ao alto índice de mortalidade um viúvo ou viúva sempre estavam a procura de um novo esposo ou esposa.

Mas dizer que não existia o amor nesta época é leviano. O amor existia sim, mas ele e o casamento eram desejos separados.

AS CONSEQUÊNCIAS

Luc Ferry cita seis consequências derivadas desta mudança social: invenção do divórcio, surgimento do laicismo, nascimento da intimidade, o amor pelas crianças, abertura ao coletivo e a sacralização do humano. Vamos observar mais de perto a primeira das consequências citadas.

Por incrível que possa parecer, com o avanço do casamento por amor nasce também o divórcio, que podemos pensar como sua antítese: uma ironia humana. Se antes o laço que unia os casamentos era principalmente os econômicos, agora com o amor as coisas mudaram de figura. Os sentimentos, salvo algumas exceções, são voláteis. Quantas pessoas conhecidas ou não você já viu casarem-se na loucura de uma paixão, principalmente artistas? Vão para Las Vegas, casam-se com as bênçãos de um 'padre Élvis' e, no dia seguinte, após uma noite de aventuras amorosas, separam-se. Salvo este exemplo exagerado, no entanto real, quando acaba o amor não existem mais motivos para continuar.

A exceção podem ser os filhos, mas mesmo estes hoje já não são motivo suficiente para muitas vezes viver em um ambiente de ódio, ressentimento e intolerância.

Analisando, desta forma, o divórcio parece ganhar certa lógica na história do casamento por amor, sem dúvida uma contra parte nada romântica.

Porém, apesar de muitos acharem o divórcio o aspecto mais terrível desta história, talvez as coisas não sejam tão ruins.

Segundo a visão de Ferry, o divórcio é um sinal de que as pessoas vêem coisas muito mais importantes no casamento do que uma simples transação comercial, que um simples negócio ou mais do que o desejo de terceiros. Para ele a dissolução do casamento é uma prova de que estar numa relação é uma opção das pessoas, e não uma obrigação, e que a regra é estar bem e feliz e não simplesmente suportar, pois é socialmente mal aceito separar-se.

CONCLUSÃO

Luc Ferry acredita que estamos vivendo tempos de amor verdadeiro, algo que talvez contradiga o senso comum. Para isso ele volta ao passado e verifica como eram as coisas naqueles tempos e as compara com a situação atual, a fim de destacar as mudanças ocorridas por várias gerações.

Deixamos de pensar em terras, propriedades e negócios e passamos a considerar a outra pessoa em si na hora de nos relacionarmos mas esta mudança também trouxe outros elementos que as camadas mais ortodoxas da sociedade precisaram acostumar-se, como o divórcio e as uniões estáveis.

Talvez a maior polêmica em seu modo de pensar seja ligar justamente a industrialização e o capitalismo com o nascimento deste novo modelo, porém seu ponto de vista é muito interessante e merece ser discutido e pensado.



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